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Niterói, RJ
Médico Veterinário que trabalha no tratamento e no estudo de distúrbios de comportamento em cães e gatos. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/9116323178127878

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Coprofagia Canina

A coprofagia é um comportamento que enoja muitos proprietários. Ver seu cão comendo fezes, admito, não é a visão mais bonita do mundo. Mas, que problemas tal comportamento pode trazer e por que ele acontece?

A consequência clínica da coprofagia vai depender da qualidade do "produto" que o cão está ingerindo. As fezes podem ser veiculadoras que bactérias patogênicas e parasitas. Mas, se o "produtor" é saudável e conhecido, o risco reduz-se significativamente. Talvez a principal consequência da coprofagia seja a rejeição do cão pela família humana com que ele vive. As pessoas tendem a ter nojo do cão ao vê-lo degustar fezes e isso pode gerar ansiedade no cão que não sabe por que está sendo rejeitado.

A coprofagia pode não ser nada de mais ou pode ser sinal que há alguma coisa errada na nutrição do cão ou em sua qualidade de vida.

Por que acontece?

Cães têm uma natureza coprófaga. Ou seja, fezes fazem parte do cardápio natural dos cães desde antes da domesticação da espécie. Há uma teoria que diz que a coprofagia inclusive aproximou o canídeo primitivo do ser humano primitivo. Coincidência ou não, a domesticação do cão iniciou-se na mesma época em que o ser humano deixa de ser nômade e passa a fixar residência. Enquanto era nômade, o destino das suas fezes não era um problema muito sério, visto que eles viviam literalmente evacuando (para economizar um termo mais chulo) e andando. Suas migrações faziam com que deixassem para trás as latrinas como estivessem. No momento em que fixam residência, as latrinas passam a ser um problema. Eis o que sugere  REID (2009):

“Os seres humanos desde o início da domesticação disponibilizaram aos  canídeos uma fonte de alimento rico em restos alimentares humanos e resíduos de fezes e os animais foram tolerados
talvez até mesmo encorajados, próximos a assentamentos humanos para desempenhar o seu papel como unidade de eliminação de lixo biológico.”

Então é perfeitamente comum que o cão procure nutrientes nessa fonte pouco convidativa para nós humanos. Fezes humanas têm muitos nutrientes "sobrando", principalmente proteínas e gorduras o que as tornam muito atrativas. Fezes de gato também são ricas em proteínas. Fezes de herbívoros são ricas em fibras. Se o caso de coprofagia do seu cão se enquadra nessas opções, pouco provavelmente ele tem algum problema.

Se ele ingere fezes de outros cães, pode estar também buscando nutrientes ou pode ser um comportamento movido pela hierarquia social, na qual o mais submisso acaba ingerindo as fezes do mais dominante. Ainda nesse contexto no qual a opção do menu são fezes caninas, as fêmeas naturalmente ingerem as fezes dos seus filhotes até 15-21 dias de vida. 

Agora se ele ingere as próprias fezes? 

Algumas raças, como o Shi tzu, o Lhasa e o Pug têm predisposição para este comportamento. Portanto, a motivação é congênita.

Alguns cães em seu período "pré-adolescente" também desenvolvem naturalemente este hábito. Neste caso, se ninguém reforçar o comportamento ele pode se extinguir quando este animal amadurecer. Por falar em reforço, a coprofagia é um comportamento autorrecompensador. O cão se sente premiado pelo próprio objeto que o leva ao comportamento. Fato que pode dificultar o tratamento, visto que o cão é reforçado sempre que o faz. Mas, há um outro reforço importante para esse comportamento, que é a atenção do proprietário. Dar atenção até mesmo para dar uma bronca no cão é uma forma de reforço, principalmente se há pouca interação entre o cão e o proprietário em outros contextos. Por isso, o cão pode ingerir fezes para chamar a atenção do proprietário. O proprietário também pode ser "culpado" da coprofagia por ter induzido o cão à coprofagia, no momento em que o puniu severamente por ele ter "descomido" em local inapropriado.

Até aqui, a coprofagia é ou um comportamento normal ou um comportamento aprendido. Mas, como eu disse, a coprofagia pode ser sinal de alterações clínicas no cão. Qualquer alteração hormonal aque aumente a sensação de fome (hiperadreno, hipertireoidismo ou diabetes) podem fazer com que o cão busque nas fezes a complementação da dieta que ele acha que está faltando.

Quadros de déficit nutricional (baixa qualidade da ração ou verminoses) também podem levar o cão à coprofagia. Nos casos em que a coprofagia é sintoma, ela vem acompanhada de outros sintomas que configurem o quadro mórbido original.

A coprofagia pode ser sinal de que a qualidade de vida do cão está abaixo do esperado. Cães que vivem em ambientes de conflito permanete (ele com outros cães, ele com algum familiar ou os familiares entre si) ou viva com espaço e/ou nivel de atividade inadequados também podem usar a coprofagia como "válvula de escape". Neste caso é importante que se busque a origem do problema para extinguir a coprofagia.

Concluindo, a coprofagia isoladamente pode não ser nenhum distúrbio sério de comportamento, mas pode ser sinal de que o cão tem algum problema clínico ou que seja necessário proporcionar mais qualidade de vida para o cão.

REID, P. J. Adapting to the human world: Dogs’ responsiveness to our social cues  Behavioural Processes, 80 (3):325-333, 2009.

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